Terça-feira, 08h37. O copo de café já está no último terço. Mais um “queria que tal coisa fizesse tal coisa, é possível?” piscando na tela. E eu me vi sendo a pessoa do “manda pra mim”. Não foi um plano.
A técnica me coroou líder. É uma ascensão sedutora; parece justa, merecida. Você vira um ponto de referência. Nem tanto pelo cargo, mas porque, repetidamente, resolve o que antes parecia insolúvel. No começo, essa admiração é um combustível delicioso.
Mas esse é um voo perigoso.
O mito de Ícaro explica melhor: Cada solução te leva um pouco mais perto do sol. O que era um fluxo animado de desafios vira um rio de dependência. O chat do ClickUp vira santuário de problemas alheios. A agenda? Um testamento do caos dos outros.
A erosão não chega com estrondo. Ela vem em mil cortes pequenos: um prazo que escorrega, um detalhe esquecido, uma resposta que demora. Até que a percepção dói: o “infalível” virou o gargalo. O “herói” começa a ocupar, sem querer, o papel de vilão na história de alguém.
Você não cai por incompetência. Você se afoga no excesso dela.
E, diante desse cenário, uma reflexão imediata oferece dois atalhos tentadores, mas ambos caros demais.
Recuo:
O quiet quitting da alma. Entregar 80%, esconder uma solução elegante, deixar a cabeça de alguém bater mais um pouco antes de intervir. Parece autopreservação; é erosão de respeito próprio.
Cinismo:
O jogo frio da relevância. Dizer “sim” ao que brilha e postergar o que importa sem holofote. Eficiência calculista, integridade em dieta. Um jogo estreito — e a alma não foi feita para caber em espaços apertados.
Recusei ambos. Refliti mais. Talvez, enfim, me deparei com uma terceira opção.
A resposta que venho construindo não é ser menos, é ser diferente. A liderança pela técnica me vendia a ilusão de que meu valor estava em ser um solucionador. Hoje, venho escolhendo ser como um arquiteto — de capacidades, de autonomia, de resultados que sobrevivem e florescem na minha ausência.
E isso, de fato, muda as coisas porque:
Delegar ganha um tom de confiança. Não é “faça isso por mim”, é “eu confio em você para fazer isso”. É apostar no potencial do outro — mas com missão clara e margens definidas.
Estar presente ganha outro sentido. Não é tomar o leme na tempestade. É ser como uma bússola. Sentar ao lado e perguntar: “Já pensou em fazer desse jeito? E se fizéssemos tal coisa? Quais são as opções? O que você recomenda?” É guiar com perguntas, não com respostas.
O não honesto é uma curva, não um fim de estrada. Ele é como uma cerca viva que protege o essencial. Cada não a um desvio é, na verdade, um sim à missão e, paradoxalmente, constrói mais confiança do que um sim que se tornaria uma promessa quebrada.
Limites impostos não são frieza; são cuidado com o propósito e com as pessoas. São uma expressão clara de como você define as arestas daquilo que faz sentido ou não para um objetivo. É você lembrando a todos, consistentemente (e consistência é inexoravelmente chave nesse processo), por que fazem o que fazem. Isso é clareza, e clareza é sexy.
Como venho colocando isso em prática:
Missão e margens: antes de cada iniciativa, lembro o porquê. Está alinhado à missão? Se não estiver, delego ou simplesmente digo “não” (e explico os motivos).
Mais perguntas: troco respostas por perguntas — “O que você está vendo? Quais opções mapeou? Qual recomenda?”
Limites explícitos: combino gatilhos de escalada (valor, risco, prazo) e todo o resto vira decisão do time. Sem culpa; com critério.
Reconhecimento: elogio e reconheço quando fazem algo bom; falo em público, mas sem favoritismo. Corrijo em particular.
Capacitação contínua: capacito o time para que não sejam apenas engrenagens, mas extensões. Com treinamento, feedback, avaliação e alinhamento, consigo delegar com confiança, porque eles desenvolvem competência.
E a essa mesma competência que seria motivo de derrocada deixa de ser fardo quando você para de usá-la como pá que cava mais fundo e passa a usá-la como alavanca para erguer os outros.
E você deixa de ser a única resposta para se tornar o criador do espaço onde as melhores respostas finalmente florescem.